quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

A Arte e o Poder (ou o poder da Arte)

A partir do momento em que o homem se estabeleceu como sociedade organizada, as manifestações artísticas sempre estiveram vinculadas, de alguma forma, ao sistema vigente. Com o passar do tempo, houveram inúmeras mudanças tanto políticas quanto sociais. Desde que o homem deixou de ser nômade, até a instituição dessa sociedade ocidental, que a partir do período renascentista passa a ser conhecida como moderna, evoluiu gradativamente e a cada mudança a arte refletia tais acontecimentos. Podendo estar aliada, subordinada ou se posicionando contra o poder, ela foi utilizada no decorrer da história como meio propagador de ideias. Essa relação entre arte e governo, será o assunto desta postagem.
Na antiguidade, por exemplo, a arte - seja ela visual, sonora ou cênica - se manifestou de acordo com o pensamento místico característicos de povos como os mesopotâmicos, egípcios e greco-romanos, apesar desses últimos terem iniciado um processo de naturalização da arte. Era prática tradicional a representação visual  dos faraós, líderes do antigo Egito, após sua morte, de forma grandiosa, colocando-os em paridade com os deuses de seu panteão. De maneira parecida, os gregos, assim como os romanos, dedicaram sua produção artística à glória de seus deuses e de seus mitos. Os únicos mortais merecedores de representação visual eram também seus líderes.


Altar de Pérgamo (Arte Helenística)

Imperador Vespasiano (Arte Romana)

Com a queda do Império Romano e consequente ascensão do cristianismo, a arte dominante no ocidente passa a ser direcionada para contar as escrituras sagradas. Mais precisamente com um cunho didático e catequizador, considerando que pouquíssimas pessoas eram alfabetizadas, a representação visual da história sagrada era mais mais rápida e eficiente.


Manuscrito de Bonmont: O sepultamento de Cristo



É interessante notar que a maior parte da arte que chega aos nossos dias é aquela que, de alguma forma, estava ligada ao poder político e/ou financeiro. O mecenato que emerge com força no Renascentismo revela uma classe burguesa faminta de status social. Esse patrocínio dos movimentos culturais por parte de uma sociedade agora laica caracteriza a abertura da arte ocidental para temas que não estavam mais estritamente ligados ao cristianismo.  
Porém, a arte não deixa de ser ligada ao poder, sendo usada ao longo da história como instrumento político. O século XX revela o uso da arte, muito pela revolução nos meios de comunicação, como forma de propaganda e meio de manipulação. Casos podem ser citados, como por exemplo, o realismo socialista empregado na União Soviética do começo do século. Mais próximo a nós é o caso do programa de educação musical empregada por Heitor Villa-Lobos. Com canções de textos ufanistas, buscava apoio ao governo Vargas, para isso exaltando o sentimento nacionalista, projetando a massificação da opinião pública.
O século XX também viu movimentos de rompimento total com a tradição artística. Primeiro com o chamado “Dada” e por volta do meio do século com o grupo Fluxus. É de se destacar o questionamento, sobretudo, da própria arte enquanto fazer humano. Com obras, peças musicais, performances e happenings consideradas absurdas, que chocaram a comunidade artística de suas épocas, inflamando grandes debates no campo conceitual. É importante dizer que grande parte dos artistas ligados a essa arte de vanguarda, que buscavam o rompimento radical com a tradição, eram ligados a universidades. Grande nome dessa arte vanguardista é o americano John Cage.

Imaginary Landscape No 4 (1951) de John Cage, interpretação de 2011

Porém, é de se notar como os questionamentos políticos se deram com as manifestações artísticas populares. Os meios de comunicação (rádio, televisão e hoje a internet) e reprodução do som abriram um vasto campo de trabalho para compositores, instrumentistas, cantores, e também para a crítica política e social. Caso exemplar é o da canção de protesto brasileira da década de 60 e da produção musical de todo o regime ditatorial militar. Era comum a agressão e exílio aos artistas em decorrência de sua postura questionadora face à política de repressão da época.
Com a popularização dos meios de gravação e reprodução de música surgiram novos estilos que se valiam dessa tecnologia. O Rap (rhythm and poetry em inglês) se populariza nos Estados Unidos e chega com força ao Brasil, se tornando meio de expressão legítima da parcela mais carente da sociedade. Os instrumentos eletrônicos são incorporados numa prática criadora, que empresta trechos de outras criações (os samples, amostras) e expõe o texto crítico característico. O rap é a manifestação musical do movimento Hip Hop que encontra sua manifestação visual no grafite, e mesmo no pixo. Característico da região urbana, surge como forma de apropriação de um espaço que, com fins na manutenção do status-quo, cada vez mais parte do princípio do não acesso à cidade por quem não pode pagar por ela. Nesse sentido, é uma resposta incisiva da subversão dos valores tipicamente elitistas do sistema econômico atual, e deve ser tratada como manifestação legítima. A criminalização do pixo reforça ainda mais o caráter subversivo dessa arte.





É emblemático o caso do artista inglês (ou grupo de artistas?) Banksy e suas pixações ácidas:







Também é característico de nosso tempo o compartilhamento de informações em rede. A cibercultura emerge como meio de comunicação praticamente ilimitado, oferecendo possibilidades de divulgação a artistas que encontram na internet o meio mais fácil de compartilhamento de sua arte. Músicos passam agora a disponibilizar suas produções fonográficas gratuitamente na rede, ainda mais considerando aqueles com compromisso social crítico. É, por exemplo, o caso do rapper Criolo.





As redes sociais se tornam também veículo para a crítica de cartunistas comprometidos com questões político-sociais, a chamada arte engajada. Nela, os artistas não vêem apenas um meio de espalhar sua mensagem, mas também revelar suas características estéticas. É o caso, por exemplo, dos cartunistas Carlos Latuff e Vitor Teixeira.


Carlos Latuff

Carlos Latuff

Vitor Teixeira

Vitor Teixeira



As reflexões sobre as manifestações citadas aqui e suas relações com a sociedade mostram que, historicamente, elas fazem parte do agir do humano no mundo, como membro colaborativo e responsável por seus atos. E se analisarmos as obras, percebemos que nem todas estão emolduradas e postas em uma galeria de arte. Ou seja, a arte vista como inalcançável e com título de “dom divino”, deu espaço para uma arte possível a todos. Se essa arte é possível a todos, porque ainda nos preocupamos em definir o que é, e o que não é considerado arte? O que é arte? Um objeto qualquer posto numa galeria, ou a possibilidade do homem modificar algo no espaço? Mesmo que sejamos incapazes de chegar a um consenso sobre tais perguntas, é necessário que entendamos primeiramente, que a arte se modificou à medida que o homem e a sociedade também se modificou. Ela faz parte do que somos e do que seremos e se revela na multiplicidade de suas manifestações.








quarta-feira, 25 de novembro de 2015

Renascença - do medieval ao moderno II : a música

Até agora tratamos aqui no blog como se deu a passagem da arte medieval para a renascentista com enfoque em algumas manifestações visuais, mais especificamente na pintura. Trataremos então desse período de transição na música.

Afresco de Giotto


No ocidente, a música começou a ser descrita no âmbito do conhecimento humano com os gregos, mais especificamente com os pitagóricos, que   estudaram as relações intervalares dos sons de altura definida*. Mais tarde, os filósofos da chamada filosofia grega clássica, em especial Platão, discutiram a função da música em sua sociedade. Já na expansão do cristianismo pela Europa, vários estudiosos ligados à Igreja, como Boécio (sec. V e VI), Guido D’Arezzo (sec. X e XI) e Tomás de Aquino (sec. XIII) produziram conhecimento teórico na área musical.
É importante citar um dos fatores mais importantes que possibilitou o desenvolvimento da música ocidental a partir da Idade Média: a notação. Surgiu com os neumas, que serviam de auxílio para a memória no canto gregoriano. Conforme a necessidade, foi sendo desenvolvida para deixar mais precisos parâmetros como altura e duração (ritmo). Juntamente com a fundamentação teórica - principalmente em relação aos conceitos de consonância e dissonância - permitiu a abertura do cristianismo à polifonia. No século XIII, o canto gregoriano monofônico deu origem primeiramente aos organa (plural de organum) (a saber: organum paralelo, organum oblíquo, organum livre, organum melismático, e outros), e mais tarde aos motetos, onde se acrescentava novas melodias e letras junto à melodia original. Algumas “escolas polifônicas” nos são conhecidas graças aos registros que sobreviveram ao tempo. A Polifonia Aquitania e a Escola de Notre Dame são notáveis por seus estilos de organa.
É nesse período que musicólogos passam a atribuir obras a determinados compositores, ou determinadas escolas de compositores. Os principais mestres da escola parisiense foram Leonín (sec. XII) e seu sucessor Pérotin (sec. XII e XIII). Muitas de suas composições são encontradas no Magnus Liber Organi (grande livro de polifonia). Outro importante códice de polifonias compilado no século XIV é o Montpellier Codex com composições atribuídas a mestres como Pérotin e Adam de la Halle. Ainda no século XIII, o rei de Castília e Leão (na atual Espanha) compilou uma série de canções compostas em homenagem a milagres atribuídos à Virgem Maria. Essas canções, escritas de maneira monofônica, mas executadas juntamente com instrumentos, de maneira polifônica, são conhecidas como Cantigas de Santa Maria e estão registradas em quatro códices.



Iluminura das Cantigas de Santa Maria

Nesse período há uma sociedade dualista, em que a igreja já não usava-se só das gravuras com temáticas sacras (Ver nosso post Renascença: Do Medieval ao Moderno). Os artistas começam a trazer em suas representações ideias do cotidiano, mostrando em suas obras uma mistura de sagrado e “mundano”. Os artistas passam também, a não fazer obras unicamente para embelezar o interior de uma igreja, ou seja, já não eram feitas em uma parede. A ideia de uma obra (telas, estátuas de pequeno porte) que alguém, mais precisamente um burguês (classe que começava a surgir na época) pudesse carregá-la, levá-la para casa, e que não seria feita com cunho sacro, veio também nesse período. Com isso, começaram a surgir lojas e guildas, lugares especializados na frabricação de obras tanto para a igreja, quanto a quem pudesse pagar pelos serviços.
No século XIV, o compositor e teórico francês Philippe de Vitry foi considerado o fundador de uma nova arte. É atribuído a ele e outros de seus conterrâneos/contemporâneos o desenvolvimento de estilos de composição e notação que culminaram nesse movimento artístico conhecido como Ars Nova. Entre as mudanças na notação, pode-se citar o desenvolvimento do ritmo, o que acaba por influenciar a composição em si. Um estilo característico desse movimento é o isorrítmico, usado em vários motetos do próprio Philippe de Vitry. Na Itália o maior nome desse período foi Francesco Landini (1325 - 1397), compositor e organista muito conhecido por suas  ballate (plural de ballata). Outro importante compositor da Ars Nova francesa foi Guillaume de Machaut, que acabou por influenciar todas as gerações seguintes. Embora se tenha perdido vários registros de Philippe de Vitry e outros contemporâneos, não se pode mensurar com certeza a real importância de Machaut, mas estudiosos o apontam como o maior nome do período.



Francesco Landini em página do Squarcialupi Codex

Conforme foram acontecendo mudanças na Europa, como a retomada de ideais greco-romanos, humanismo substituindo aos poucos o teocentrismo, a música se modificou juntamente com essa revolução cultural, chamada pelos modernos de Renascença. A música ganha novo fôlego em seu desenvolvimento, muito pela leitura dos textos gregos, que além da teoria musical, davam destaque à música e sua importância na formação do cidadão. O método de composição em contraponto é aperfeiçoado de acordo com a noção de consonância da época, o que juntamente com a evolução da notação acontecida no período da Ars Nova, possibilitou o desenvolvimento desse estilo. Mais tarde, a técnica contrapontista desenbocaria na estética barroca, que daria os rumos do sistema tonal, ainda em fase embrionária no período renascentista.
Outro fator muito importante para a disseminação dessas novas ideias foi o desenvolvimento da impressão. As partituras que antes precisavam ser copiadas a mão passaram a ser impressas em uma máquina desenvolvida por Johann Gutenberg, que agora permitia a reprodução de milhares de cópias a partir de um negativo. Alguns compositores notáveis do período renascentista da história da música ocidental são Guillaume Dufay, Josquin Des Prez, Giovanni Pierluigi da Palestrina. Essas mudanças caracterizam o primeiro suspiro da música na chamada Era Moderna.

Pintura de Hans Memling

Referências:

BURKHOLDER, J. P.; GROUT, D. J. e PALISCA, C. V. A history of western music. 8.ed. New York: W. W. Norton & Company, Inc., 2010.
CANDÉ, Roland de. História universal da música. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
HAUSER, A. História social da arte e da literatura. São Paulo: Martins Fontes, 1998.



sexta-feira, 13 de novembro de 2015

Renascença - do medieval ao moderno

A Idade Média foi caracterizada por uma mentalidade muito particular, onde a Igreja detinha o poder sobre os reis e consequentemente sobre a população. Nesse tipo de sociedade, basicamente teocrática, toda ação humana tinha como fim a glória do Salvador, tudo muito bem controlado pela instituição religiosa/política, uma vez que a leitura teológica das escrituras apontavam para o paradigma de um ecumenismo dominador.
A arte reflete esse pensamento e se concentra em temas basicamente religiosos. Apesar de ter vivido em um período posterior a esse domínio absoluto da Igreja, as obras do pintor Hieronymus Bosch retratam de maneira singular o pensamento e o imaginário do homem medieval. Os contrastes do período são postos em pinturas como o tríptico do Jardim das Delícias Terrenas.



O Jardim das Delícias Terrenas  (Hieronymus Bosch)



Bosch também representou os sete pecados capitais, símbolo do medo das tentações mundanas pregado pela Igreja. Essa obra serviu de base para o espetáculo cênico-musical De Zeven Zonden van Jeroen Bosch do grupo holandês de música antiga Camerata Trajectina, que reconstruiu obras da época e região onde viveu o pintor (danças, lieds e trechos de missas).


Os Sete Pecados (Hieronymus Bosch)



Trailer do espetáculo De Zeven Zonden van Jeroen Bosch do grupo Camerata Trajectina



Esse panorama começa a mudar com uma sucessão de fatos que iriam descentralizar o poder sobre o conhecimento das mãos da Igreja Católica. Entre eles podemos citar a criação de centros de estudos independentes chamados de Universidades. Outro fato que revelou a fragilidade do paradigma dominante foi uma epidemia que assolou a Europa. Com a chamada peste negra ou peste bubônica, ocorre um número enorme de mortes por todo o continente, dizimando um terço da população europeia. Em um período em que a igreja era soberana e que retem todos os conhecimentos inclusive medicinais, uma devastação dessas fez com que a mesma fosse vista de outra forma.
Se só os padres, bispos e afins tinham o “poder” de curar as doenças, como eles não estavam conseguindo frear tal calamidade? Questões como essas começaram a surgir, e fizeram com que a crença no invisível se abalasse, levando a uma decadência da Igreja Católica. Agora, a fé teria que se moldar como a sociedade necessitava. O inatingível deveria se unir a razão. No entanto, como unir fé e conhecimento?
Segundo o escritor e historiador Arnold Hauser, a doutrina apontou para um caminho de síntese dos conhecimentos, onde a religião faria uso do conhecimento para fortalecer a fé. No entanto, essa síntese do “mundo das ideias” com o “mundo sensorial”, causou uma certa dualidade da forma de se pensar e, principalmente, no mundo das artes.
Personagens e temas sacros dividiam espaço com fatos do cotidiano. Essa dualidade é ilustrada na obra de Rogier Van Der Weydwn (A descida da cruz), em que o tema religioso divide o espaço com técnicas avançadíssimas de representação da realidade (perspectiva) e com elementos do mundo natural (a representação do corpo e elementos da natureza)



Van Der Weydwn: A descida da cruz


Se nessa obra observamos a dualidade entre o tema religioso e a técnica secular, em Botticelli, por exemplo, a temática se volta aos tempos de glória do Império Romano da Idade Antiga. Os problemas causados pelo paradigma imposto pela Igreja Católica foram absorvidos pelos artistas e intelectuais da época. Juntamente com os trabalhos historiográficos que começaram a entrar em uma ascenção, essas pessoas buscavam uma renovação que partia do pressuposto da retomada do apogeu do modelo de progresso romano, o que levou a uma gigantesca revolução cultural iniciada nas cidades italianas. Mas não era apenas uma volta ao passado, era um reavivamento dos valores antigos adaptados às necessidades do mundo contemporâneo. A nova classe média necessitava de status social e o fez pelo patrocínio das artes e produções intelectuais. A Primavera de Botticelli, encomendada pela família Médici, ilustra muito bem essa mudança vivida na virada do século XV para o XVI: uma obra de arte encomendada por uma família burguesa, com temática pagã representando deuses do panteão greco-romano, e técnica de representação da natureza em conformidade com os padrões mais avançados da época.


A Primavera (Sandro Botticelli)


Se A Primavera de Botticelli representa a retomada dos valores antigos por meio da mitologia, uma obra se destaca pelo simbolismo implícito na temática. Por encomenda do Vaticano, o também italiano Rafael pintou um de seus afrescos mais conhecidos: A Escola de Atenas. O fato de a própria Igreja ter encomendado o afresco com tal tema, mostra a nova inclinação teológica que buscava uma conformidade com os novos paradigmas culturais emergentes. Na pintura de Rafael são representados vários filósofos da Antiguidade: Platão, Aristóteles, Sócrates, Pitágoras, Euclides, Parmênides e muitos outros.



A Escola de Atenas (Rafael)



Os simbolismos estão em todas as partes: no centro, os gestos de Platão e Aristóteles representam as divergências em suas filosofias (Platão aponta para o alto, simbolizando o retorno ao mundo das ideias, e Aristóteles aponta para o mundo natural); os pitagóricos, estudiosos das leis da acústica estão alinhados com a estátua de Apolo, deus das musas (música); os geômetras - como o arquiteto  renascentista Bramante -  estão reunidos entorno da figura de Euclides (ou Arquimedes) e alinhados à estátua da deusa grega Atenas ou deusa romana Minerva, deusas da razão.

O afresco representa de forma emblemática a revolução cultural que se passava na época, o que acabou por fundamentar de vez as bases da civilização ocidental. Se a obra foi encomendada pela máxima instituição religiosa, sua temática revela uma investida pela apropriação da razão como base para a fé. Porém, o caminho tomado pelos movimentos intelectuais - arte inclusa, já que agora os artistas instituíram eles mesmos a pintura como ciência - não tinha mais volta. Estava instituída a era da razão, estava instituída a Idade Moderna.



Referências:
ABRIL. Bosch/Coleção Grandes Mestres. São Paulo: Abril, 2011.
ABRIL. Botticelli/Coleção Grandes Mestres. São Paulo: Abril, 2011.
GOMBRICH, E.H. A história da arte. Rio de Janeiro: LTC, 2013.
HAUSER, A. História social da arte e da literatura. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
HISTÓRIA VIVA. O Tempo do Renascimento. São Paulo: Duetto Editorial, v. 1. n. 4, 2009.

terça-feira, 3 de novembro de 2015

Michelangelo e a abóbada da Capela Sistina: o artista, a obra e seu tempo


O século XIV marcou o início de um período de mudanças que transformou a sociedade ocidental Europeia em todos os níveis. A economia antes feudal, basicamente formada por clero, nobreza e vassalagem, começa a se modificar com o surgimento de uma nova classe. Os avanços na construção de cidades, primeiramente como interpostos, deu início a um fenômeno de êxodo rural, onde os novos habitantes urbanos passaram a produzir não mais apenas para a subsistência ou para o senhor feudal, mas agora vende seus serviços e obtêm lucro. Essa nova classe se torna conhecida como burguesia. Acontecem também avanços no planejamento dessas cidades, como na burocracia, urbanismo, e saúde pública, uma vez que o conhecimento a cerca de, por exemplo, saneamento básico, produziram problemas como a peste bubônica, que dizimou um terço da população europeia. Há, nesse momento, uma grande preocupação com questões de cunho humanístico que foram deixadas de lado durante a Idade Média. Isso trouxe um novo interesse pelo entendimento do mundo com base na razão, sem se contrapor à fé, mas complementando-a. Esse interesse trouxe uma retomada dos textos greco-romanos, gerando novas interpretações que se adaptassem à realidade da época. Como movimento iniciado nas cidades italianas, esse interesse pelos antigos remetia diretamente aos tempos de glória do império romano - influenciado especialmente pela cultura grega. Foi chamada então de Renascença.
A influência desse movimento cultural foi especialmente percebida nas manifestações artísticas. Precedido pelo movimento gótico, o renascimento marcou uma retomada de padrões estéticos greco-romanos, principalmente na arquitetura e nas artes visuais em geral. O ideal humanístico teve reflexo no estudo não apenas do corpo humano, mas da natureza.  Os artistas, pintores e escultores absorveram essas influências e uniram em sua arte a representação da realidade e a busca de harmonia na composição característica do período gótico. Começou com as inovações de Giotto, passando por Masaccio, Donatello, Jan Van Eyck (no norte), Sandro Botticcelli e teve seu auge na chamada Alta Renascença com Leonardo da Vinci e Michelangelo. Esses artistas, que agora assinavam sua obras, eram patrocinados pela nova classe burguesa, que enriquecia e almejava prestígio social. Para isso, os chamados mecenas investiam em obras de arte e disputavam os serviços dos artistas de renome.
A cidade de Florença teve uma participação muito importante nesse período da história da arte, uma vez que possuía o incentivo de importantes mecenas, notavelmente a família Médici. Um dos grandes artistas desse período  - entre o século XV e XVI - foi Michelangelo. Pupilo de Domenico Ghirlandaio, absorveu os ensinamentos de seu mestre e construiu uma sólida carreira como pintor e escultor. De temperamento rude e selvagem, era plenamente consciente de seu contexto histórico. Era pelas discussões com o amigo filósofo Agnolo Poliziano - cujos serviços, assim como ele, eram muitas vezes solicitados pelos Médici - que Michelangelo buscava entender a mentalidade antiga, sua cultura e seus temas, utilizando esses conhecimentos a serviço de sua arte.

Michelangelo: Baco

Entre as suas obras mais célebres está a abóbada da Capela Sistina, em Roma, cujas paredes já haviam sido pintadas por artistas como Botticelli, Ghirlandaio e Perugino. Foi a segunda incubência solicitada pelo papa Júlio II, após a frustração do cancelamento da escultura para o túmulo do pontífice - pelo menos por enquanto. O artista tentou se esquivar de todas as maneiras das investidas pela aceitação do encargo, até alegando que era escultor e não pintor, mas acabou cedendo por conta da pressão imposta.

Interior da Capela Sistina

Após uma mudança no projeto inicial, o papa Júlio II e Michelangelo entraram em consenso, dando ao artista a chance de realizar a obra da forma como queria. Os temas e personagens então foram idealizados de forma que completassem e dialogassem teologicamente com as pinturas já existentes nas paredes.

Abóbada da Capela Sistina, afresco pintado entre 1508 e 1512

Foram quatro anos de trabalho até que a obra viesse a público. Vários assistentes foram contratados, muitos deles, assim como Michelangelo, também discípulos de Ghirlandaio. Porém, de repente ele não permitiu que niguém mais se aproximasse, realizando sozinho todas as atividades, da concepção e estudos até a pintura dos afrescos em si.
As representações da abóbada são basicamente estas: nos nove painéis são apresentadas cenas do Gênesis (a criação do mundo, criação do homem, o pecado original e o dilúvio); nos quatro penachos angulares estão a intervenção de Deus em socorro do povo eleito (Davi e Golias, Judite e Holofernes, a serpente de bronze, crucifixo de Amã); nos tronos estão doze videntes que anunciaram a vinda do filho de Deus (cinco sibilas e sete profetas); nos gomos e lunetas são representados antepassados de Cristo.
Segundo o historiador Ernst Gombrich, antes de Michelangelo a representação da criação do homem nunca havia sido pensada daquela forma. Np quadro A Criação de Adão, talvez o mais conhecido detalhe da abóbada, representa Deus atribuindo vida ao homem sem ao menos tocá-lo.

capela_sistina_adao.jpg
A Criação de Adão, detalhe da abóbada da Capela Sistina


Entre 1533 e 1541 Michelangelo ainda ficaria responsável pelo afresco do Juízo Final na parede do altar da capela.

Juízo Final, parede do altar da Capela Sistina

Apesar de ser atribuído o caráter de gênio a muitos artistas, é preciso entender que, por mais que os mesmos tenham realizado grandes obras e sejam eternizados por isso, não é simplesmente um dom divino que proporcionou suas grandes realizações, como uma antologia crítica pode sugerir. Os artistas do período mencionado começaram a estudar desde muito jovens. Leonardo da Vinci por exemplo, observava e estudava minuciosamente a natureza e tudo o que o cercava para a realização de sua arte.
Portanto, não nos cabe dizer que eles foram melhores ou que nasceram agraciados. Seria mais interessante nos referirmos aos mesmos como grandes artistas, entendendo que viveram em uma outra época, com outra sociedade e que a cultura exerceu influência direta na criação do artista. São produto de um contexto: absorveram o conhecimento de seu tempo, sua sociedade e suas crises, sendo sua obra um reflexo.

Uma visita virtual na Capela Sistina pode ser feita na página oficial do Vaticano neste link.

Referências:
ABRIL. Michelangelo/Coleção Grandes Mestres. São Paulo: Abril, 2011.
CAMPOS, F. MIRANDA, R. G. A escrita da história. 1 ed. São Paulo: Escala Educacional, 2005.
GOMBRICH, E.H. A história da arte. Rio de Janeiro: LTC, 2013.
HISTÓRIA VIVA. O Tempo do Renascimento. São Paulo: Duetto Editorial, v. 1. n. 4, 2009.