Até agora tratamos aqui no blog como se deu a passagem da arte medieval para a renascentista com enfoque em algumas manifestações visuais, mais especificamente na pintura. Trataremos então desse período de transição na música.
Afresco de Giotto |
No ocidente, a música começou a ser descrita no âmbito do conhecimento humano com os gregos, mais especificamente com os pitagóricos, que estudaram as relações intervalares dos sons de altura definida*. Mais tarde, os filósofos da chamada filosofia grega clássica, em especial Platão, discutiram a função da música em sua sociedade. Já na expansão do cristianismo pela Europa, vários estudiosos ligados à Igreja, como Boécio (sec. V e VI), Guido D’Arezzo (sec. X e XI) e Tomás de Aquino (sec. XIII) produziram conhecimento teórico na área musical.
É importante citar um dos fatores mais importantes que possibilitou o desenvolvimento da música ocidental a partir da Idade Média: a notação. Surgiu com os neumas, que serviam de auxílio para a memória no canto gregoriano. Conforme a necessidade, foi sendo desenvolvida para deixar mais precisos parâmetros como altura e duração (ritmo). Juntamente com a fundamentação teórica - principalmente em relação aos conceitos de consonância e dissonância - permitiu a abertura do cristianismo à polifonia. No século XIII, o canto gregoriano monofônico deu origem primeiramente aos organa (plural de organum) (a saber: organum paralelo, organum oblíquo, organum livre, organum melismático, e outros), e mais tarde aos motetos, onde se acrescentava novas melodias e letras junto à melodia original. Algumas “escolas polifônicas” nos são conhecidas graças aos registros que sobreviveram ao tempo. A Polifonia Aquitania e a Escola de Notre Dame são notáveis por seus estilos de organa.
É nesse período que musicólogos passam a atribuir obras a determinados compositores, ou determinadas escolas de compositores. Os principais mestres da escola parisiense foram Leonín (sec. XII) e seu sucessor Pérotin (sec. XII e XIII). Muitas de suas composições são encontradas no Magnus Liber Organi (grande livro de polifonia). Outro importante códice de polifonias compilado no século XIV é o Montpellier Codex com composições atribuídas a mestres como Pérotin e Adam de la Halle. Ainda no século XIII, o rei de Castília e Leão (na atual Espanha) compilou uma série de canções compostas em homenagem a milagres atribuídos à Virgem Maria. Essas canções, escritas de maneira monofônica, mas executadas juntamente com instrumentos, de maneira polifônica, são conhecidas como Cantigas de Santa Maria e estão registradas em quatro códices.
Iluminura das Cantigas de Santa Maria |
Nesse período há uma sociedade dualista, em que a igreja já não usava-se só das gravuras com temáticas sacras (Ver nosso post Renascença: Do Medieval ao Moderno). Os artistas começam a trazer em suas representações ideias do cotidiano, mostrando em suas obras uma mistura de sagrado e “mundano”. Os artistas passam também, a não fazer obras unicamente para embelezar o interior de uma igreja, ou seja, já não eram feitas em uma parede. A ideia de uma obra (telas, estátuas de pequeno porte) que alguém, mais precisamente um burguês (classe que começava a surgir na época) pudesse carregá-la, levá-la para casa, e que não seria feita com cunho sacro, veio também nesse período. Com isso, começaram a surgir lojas e guildas, lugares especializados na frabricação de obras tanto para a igreja, quanto a quem pudesse pagar pelos serviços.
No século XIV, o compositor e teórico francês Philippe de Vitry foi considerado o fundador de uma nova arte. É atribuído a ele e outros de seus conterrâneos/contemporâneos o desenvolvimento de estilos de composição e notação que culminaram nesse movimento artístico conhecido como Ars Nova. Entre as mudanças na notação, pode-se citar o desenvolvimento do ritmo, o que acaba por influenciar a composição em si. Um estilo característico desse movimento é o isorrítmico, usado em vários motetos do próprio Philippe de Vitry. Na Itália o maior nome desse período foi Francesco Landini (1325 - 1397), compositor e organista muito conhecido por suas ballate (plural de ballata). Outro importante compositor da Ars Nova francesa foi Guillaume de Machaut, que acabou por influenciar todas as gerações seguintes. Embora se tenha perdido vários registros de Philippe de Vitry e outros contemporâneos, não se pode mensurar com certeza a real importância de Machaut, mas estudiosos o apontam como o maior nome do período.
Francesco Landini em página do Squarcialupi Codex |
Conforme foram acontecendo mudanças na Europa, como a retomada de ideais greco-romanos, humanismo substituindo aos poucos o teocentrismo, a música se modificou juntamente com essa revolução cultural, chamada pelos modernos de Renascença. A música ganha novo fôlego em seu desenvolvimento, muito pela leitura dos textos gregos, que além da teoria musical, davam destaque à música e sua importância na formação do cidadão. O método de composição em contraponto é aperfeiçoado de acordo com a noção de consonância da época, o que juntamente com a evolução da notação acontecida no período da Ars Nova, possibilitou o desenvolvimento desse estilo. Mais tarde, a técnica contrapontista desenbocaria na estética barroca, que daria os rumos do sistema tonal, ainda em fase embrionária no período renascentista.
Outro fator muito importante para a disseminação dessas novas ideias foi o desenvolvimento da impressão. As partituras que antes precisavam ser copiadas a mão passaram a ser impressas em uma máquina desenvolvida por Johann Gutenberg, que agora permitia a reprodução de milhares de cópias a partir de um negativo. Alguns compositores notáveis do período renascentista da história da música ocidental são Guillaume Dufay, Josquin Des Prez, Giovanni Pierluigi da Palestrina. Essas mudanças caracterizam o primeiro suspiro da música na chamada Era Moderna.
Pintura de Hans Memling |
Referências:
BURKHOLDER, J. P.; GROUT, D. J. e PALISCA, C. V. A history of western music. 8.ed. New York: W. W. Norton & Company, Inc., 2010.
CANDÉ, Roland de. História universal da música. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
HAUSER, A. História social da arte e da literatura. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
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